Mauricio Figueiredo

Educação, recursos humanos e o melhor do et cetera

sábado, 23 de abril de 2016

* Carlos Ney - PALAVRAS QUE SANGRAM -

("Contra a ditadura, o depoimento mudo das bocas cheias de terra") - 

A convicção emocionada das narrativas fizeram com q as imagens jamais abandonassem minha mente, mesmo após tantos anos. Fazer dessa colagem amarelada pelo tempo, um conto, é um desafio q me imponho. E por conta disso, volto por sobre meus próprios passos, no sentido inverso ao do tempo. Década de 90. Caminho pelo bairro onde tudo irá acontecer, na Zona Norte do Rio. Aqui passei grande parte da minha vida. A avenida tem a separar as duas mãos de trânsito, um canteiro central de árvores frondosas. Trânsito ainda raro, nesses dias, liberando espaço para o futebol dos garotos. Começa a anoitecer. Um carro, grande e preto, estaciona junto ao meio-fio. Depois de alguns momentos, a porta traseira se abre. Um homem desce e começa a caminhar, atravessando o canteiro central. Do outro lado, talvez uns cinquenta passos distante, um fusca azul, também estacionado junto ao meio-fio, mantém o motor ligado. De repente, o homem começa a correr. Antes de atirar-se dentro do fusca, seu grito pode ser ouvido: -Fujam, é uma armadilha!. Os pneus reclamam contra a súbita arrancada. Inicia-se uma caçada veloz. Ao contrário do outro, o motorista do fusca parece desconhecer o traçado das ruas, preocupado apenas em distanciar-se do carro que quase encosta no seu. Hoje não é o dia da caça. Uma rua sem saída interrompe o jogo. Por trás dele, mais carros chegam e tampam o gargalo da garrafa em que se meteu. Do teto de um prédio inacabado, sem serem percebidos, três garotos observam a cena, Quatro andares abaixo. Homens fortemente armados, todos em roupas civis, demonstrando, no entanto, disciplina militar, esperam q a caça se exponha. Inexplicavelmente, para os garotos, as portas do fusca permanecem fechadas. Depois de minutos que pareceram horas, um homem se destaca do grupo dos caçadores, empunhando uma arma de revista em quadrinhos. O disparo rasga a noite. Ao estilhaçar o vidro traseiro, o fusca se torna uma bola de fogo. Um carro de bombeiros tenta avançar mas é impedido. No dia seguinte, enquanto as pessoas de bem ainda dormem, a carcaça incinerada, com seus pneus derretidos, é retirada, deixando marcado nas pedras irregulares da rua, o único registro da tragédia.
Nota do Autor - Este conto é dedicado aos 3 garotos, já que foi através deles que os mortos contaram esta história.  

* Carlos Ney é jornalista e escritor

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