"O futebol é o pretexto para a disseminação do ódio e da intolerância", afirma coordenador do Juizado do Torcedor
Atuante desde 2003, o Juizado Especial do Torcedor e dos Grandes Eventos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) ultrapassou a marca de 1.565 transações penais (quando o infrator recebe pena não privativa de liberdade em troca da pena alternativa), 253 prisões e 486 pessoas afastadas por envolvimento em confusões nas partidas.
No ranking das torcidas organizadas com mais anotações na Justiça, a Força Jovem do Vasco ocupa o primeiro lugar, com 55 pessoas, seguida de torcidas do Corinthians (41), Young Flu (31), dois grupos do Flamengo (10 integrantes) e Botafogo (sete torcedores). Em entrevista, o presidente da Comissão Judiciária de Articulação dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais em Eventos Esportivos, Culturais e Grandes Eventos (CEJESP), desembargador Mauro Martins, afirma que clubes e federações precisam assumir sua parcela de responsabilidade na segurança do torcedor, diz que, apesar da crise, a relação entre os órgãos públicos é de parceria e elogia a legislação que garante os direitos de quem vai ao estádio para torcer.
TJRJ: Qual o estágio da violência nas praças esportivas?
Desembargador Mauro Martins: Há que se mencionar, primeiramente, que o problema não é restrito ao Rio de Janeiro, nem ao Brasil. Trata-se de um fenômeno social, ligado a inúmeros fatores e que se verifica em vários países. Penso que o futebol, no caso, constitui o pretexto, a válvula de escape para a disseminação do ódio e da intolerância, não sendo a rivalidade esportiva a causa da violência, mas sim a oportunidade em que se manifesta em níveis exacerbados. Atos de intolerância ocorrem por motivos religiosos, sexuais, políticos, dentre outros nos quais a violência não se prende a qualquer causa racional, decorrendo da mera divergência de pensamento, de crença, de ideologia ou de opção religiosa. Entendo, portanto, que a questão se relaciona com causas diversas, não sendo adequado imaginar que a Justiça Criminal, através de medidas sancionadoras, poderá solucioná-la, sendo necessário maior investimento na educação e na formação das pessoas.
TJRJ: O Juizado tem firmado parcerias com outros órgãos para garantir a paz nos estádios do Rio?
MM: Há que se ressaltar o trabalho da Polícia Militar, através do GEPE, que, com todas as dificuldades estruturais, vem prestando um serviço de qualidade e atuando inclusive de forma preventiva no combate a violência. O GEPE desenvolve uma interlocução interessante com as torcidas organizadas, sabendo diferenciar o bom torcedor, aquele imbuído do espírito esportivo, daquele torcedor violento e que deve ser afastado das praças esportivas, em razão dos malefícios que sua presença proporciona. Deve ser mencionado, ainda, que o problema se agrava pelo fato do agrupamento em torcidas organizadas de pessoas com viés violento. A questão das torcidas organizadas constitui um ponto importante desse cenário, cabendo separar aquelas que contribuem para a beleza do espetáculo e que trazem aspectos positivos para o evento, daquelas que possuem como único mote a disseminação da violência e o cometimento de delitos, tratando-se verdadeiramente de associações criminosas, que devem ser banidas dos estádios.
TJRJ: E com relação à atuação do Juizado nos estádios propriamente ditos?
MM: No tocante ao Juizado do Torcedor, considero que sua atuação “in loco” é altamente positiva, proporcionando resultados irrefutáveis e colaborando para a pacificação nas praças esportivas. Atualmente, é notória a presença de um Juiz de Direito nos estádios, sendo do conhecimento de todos que qualquer situação envolvendo a prática de delito, seja ou não de menor potencial, será levada ao Judiciário, que adotará as providências adequadas, que variam de um mero pagamento de multa, ou afastamento temporário dos estádios, até a prisão, dependendo da gravidade da situação concreta.
TJRJ: Qual a estrutura atual do Juizado do Torcedor?
MM: Há que se ressaltar que o Juizado do Torcedor, para cumprir o papel que dele se espera, deve contar com estrutura administrativa adequada, sendo inequívocos os avanços já alcançados, que, todavia, ainda se mostram aquém do necessário. O Juizado conta com um valoroso grupo de juízes e funcionários, que trabalha de forma comprometida e apaixonada, desdobrando-se para atender a uma demanda que se avoluma diariamente. O desmembramento do Juizado e a sua transformação em Vara do Torcedor constitui medida necessária que terá que ocorrer para que a Justiça continue atuando de forma efetiva e com celeridade, nesse campo.
TJRJ: Existe algum tipo de resistência no aprimoramento da segurança nos estádios?
MM: Há resistência dos clubes e das entidades que organizam os campeonatos a toda medida que se busca implantar para o aprimoramento da segurança nos estádios, como se tal questão fosse da exclusiva atribuição do poder público. Não há dúvida de que nas vias públicas a atribuição é da administração pública, cabendo às forças policiais o enfrentamento do problema. Contudo, no interior dos estádios, penso que a questão não é tão simples. O jogo de futebol é um evento privado entre associações privadas, cabendo-lhes, portanto, zelar pela segurança daqueles que compram ingresso e que, por conseguinte, são, além de torcedores, consumidores dos serviços que lhe são disponibilizados. A lei, inclusive, através do Estatuto do Torcedor, confere aos mandantes dos jogos responsabilidade pela segurança dos torcedores, sendo, assim, necessário, que, de fato, assumam os clubes o papel que a lei lhes atribui.
TJRJ: Do ponto de vista normativo, a legislação que envolve a segurança nos estádios e as garantias ao torcedor são eficazes?
MM: Com relação à legislação, é importante pontuar que o Estatuto do Torcedor constitui importante instrumento legal, não sendo necessária a edição de outros atos normativos. Ao contrário, basta conferir efetividade aos seus comandos, sendo imperioso, primeiramente que seu conteúdo seja bem assimilado pelas autoridades, inclusive do Judiciário, para que seja fielmente cumprido. A lei que temos é muito boa e moderna, basta que suas normas sejam observadas por todos os atores do evento esportivo.